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O altar e sua orientação na Liturgia


O altar é uma espécie de mesa tradicionalmente feita de pedra, tendo a base de sustentação fechada como uma caixa, sendo o centro da ação litúrgica: nela se realiza o sacramento da Divina Eucaristia, memorial do Santo Sacrifício. Diz-se “tradicionalmente” porque não é lei.


Uma das discussões mais inflamadas entre os grupos católicos é sobre a posição do altar no presbitério. Antes do Concílio Vaticano II, o mais comum é que o altar ficasse preso na parede e o sacerdote rezasse Missa voltado na mesma direção do povo. Com a reforma pós-conciliar e as novidades trazidas, em especial a da Missa “de frente para o povo”, muito da compreensão litúrgica se perdeu pela má formação do povo.


Para tratar deste tema, este artigo trilha o seguinte caminho: (a) trata do altar conforme a atual disposição da Instrução Geral ao Missal Romano (IGMR); (b) trata da orientação da oração litúrgica na tradição cristã, que se desenvolveu a partir de uma herança do Antigo Testamento; (c) trata da orientação do altar a partir da orientação da oração, trazendo também a posição do papa Bento XVI sobre o assunto; (d) trata das objeções levantadas contra a proposta discorrida no artigo.


O propósito é uma reflexão séria e sadia, que busca demonstrar como a discussão sobre a posição do altar não é frutífera se não se pautar na essência da Liturgia, assim contribuindo com o bem da Santa Igreja. Não é nosso objetivo nos opor a Concílios ou papas e nem poderia ser, pois a tradição é sempre interpretada com continuidade.



O altar conforme a IGMR


A atual Instrução Geral ao Missal Romano dedica 13 números de seu texto para falar sobre esta mesa e sua ornamentação. Em primeiro lugar, proclama que no templo, lugar sagrado destinado ao culto, é conveniente haver um altar fixo, significando Jesus Cristo como pedra viva da Igreja; nos demais lugares, porém, o altar pode ser móvel. O altar fixo, segundo a IGMR, é aquele que está unido ao pavimento e não pode ser removido. O altar móvel é aquele que pode ser removido.


A IGMR prossegue, então, determinando que o altar-mor (altar principal) seja afastado da parede, de modo que se possa andar facilmente ao seu redor, assim como celebrar “de frente para o povo” (as aspas serão explicadas mais à frente). Reiterando que o altar é normalmente fixo e dedicado, o documento afirma que também é possível construir altares com outros materiais dignos, e não pedra, conforme dispor a Conferência Episcopal.


Em seguida, a Instrução afirma que é conveniente erigir um só altar nas novas igrejas a serem construídas; nas igrejas antigas que possuem altar preso na parede, caso não seja possível afastá-lo sem prejudicar seu valor artístico, deve-se erigir um novo altar fixo e dedicado, e nele deverão ocorrer as celebrações litúrgicas. O altar antigo, preso na parede, não deve ser ornado de modo especial, a fim de que toda a atenção se volte ao novo altar.


Nos números seguintes, a IGMR dispõe algumas regras sobre flores e ornamentação, bem como obrigatoriedade e posição dos castiçais e da cruz de mesa.


Todavia, o objetivo deste artigo não é apenas apontar regras enumeradas numa Instrução Geral, mas também refletir sobre o altar e a orientação na celebração litúrgica, que são incompreendidos pela maioria dos fiéis que padecem pela falta de formação. De fato, a discussão entre alguns grupos católicos toca muito no ponto do altar preso na parede contra o altar fora da parede, ou na celebração “de frente para Deus” contra a celebração “de frente para o povo” (sendo esta última uma expressão utilizada na própria IGMR), mas estes não são pontos essenciais em si mesmos.


O axioma da lex orandi (lei da fé) legado pela tradição é um centro gravitacional bem mais amplo e sustentável para um debate sadio e fecundo a respeito da construção das igrejas e da disposição do espaço litúrgico. É muito fácil aceitar que os templos católicos devem ser construídos em vista de uma melhor celebração, auxiliando aos fiéis em sua piedade e aos ministros da liturgia em seu serviço. Se o rito prevê que alguém leia um texto da Sagrada Escritura para a assembleia, por exemplo, é óbvio que deve haver um espaço apropriado para isso, onde a pessoa pode ser vista e ouvida com clareza (este espaço se chama púlpito). Para um exemplo absurdo, pode-se dizer que também é por isso que não existem estacionamentos no presbitério, pois carros não são previstos na Santa Missa.


Entendida esta simples disposição, pode-se buscar na tradição aquilo que a Igreja sempre entendeu sobre Liturgia, bem como a fé e a forma de oração que se desenvolveram ao longo dos séculos, a fim de aprofundar a discussão sobre a posição do altar, do celebrante e da assembleia litúrgica.



A orientação litúrgica na tradição cristã



Embora a tradição cristã não devesse se prender aos costumes judaicos (e realmente não se prendeu), muitos dos elementos litúrgicos foram herdados do Antigo Testamento, onde Deus havia disposto o modo como queria ser cultuado. Dentre esses elementos, a refinada relação entre liturgia e espaço-tempo é basilar para o desenvolvimento da orientação litúrgica dos primeiros cristãos, o que influenciou a construção material dos templos e orgânica da liturgia.


O papa emérito Bento XVI, na época Cardeal Joseph Ratzinger, dedicou uma seção de sua obra Introdução ao Espírito da Liturgia para tratar da Arquitetura Sagrada e sua relação com a Liturgia na tradição cristã. No capítulo II, recorrendo às pesquisas realizadas por Louis Bouyer, Ratzinger procura descrever o fato de que a casa de Deus cristã surgiu em continuidade com a sinagoga judaica, que recebeu a novidade do Cristo morto e ressuscitado.


Segundo ele, a sinagoga era uma estrutura que reportava ao templo de Jerusalém. Enquanto no templo aconteciam os sacrifícios conforme as prescrições divinas para a Arca da Aliança, na sinagoga acontecia uma espécie de culto da Palavra. De fato, a sinagoga não era simples lugar de ensinamento, mas focava na presença de Deus e, por isso, fundava-se em dois pontos essenciais: a cátedra de Moisés e a orientação da oração.


A cátedra de Moisés, segundo Ratzinger, era o ponto de onde o rabino deveria falar, representando o próprio Moisés e tornando presente aquilo que Deus falou no Sinai. Essa representatividade não era apenas um símbolo como qualquer outro, mas buscava realmente atualizar os acontecimentos passados, de forma que o Sinai não fosse lembrado como mera história, mas como acontecimento atual.


Quanto à orientação da oração, todas as sinagogas (no tempo de Jesus) eram voltadas na direção de Jerusalém. A Arca da Aliança foi perdida no exílio e, então, o Santo dos Santos vazio se tornou um lugar de espera em Deus. Assim, com as sinagogas voltadas para a cidade santa, o rabino e o povo estavam “olhando” para o vazio Santo dos Santos, o local onde Deus realmente se fazia presente em meio ao seu povo (embora a Arca estivesse ausente), e esperavam que Ele um dia reconstruisse seu trono glorioso.


Segundo Ratzinger, essa expressa relação entre a liturgia da palavra da sinagoga e a liturgia sacrifical do templo se traduziu também numa forma específica de oração. Como não era possível oferecer sacrifícios e holocaustos a Deus conforme suas prescrições, a liturgia buscava o sacrifício do espírito, isto é, através da oração.


Foi a partir desses dados que os primeiros cristãos desenvolveram a sua forma específica de rezar, como afirma o Cardeal Ratzinger:


Com relação à forma até aqui delineada da sinagoga, da essência da fé cristã derivam três inovações que constituem o traço propriamente novo e específico da liturgia cristã. Em primeiro lugar, não se olha mais para Jerusalém, o templo destruído já não é mais considerado lugar da presença terrena de Deus. O templo de pedra não exprime mais a esperança dos cristãos; o seu véu se rasgou para sempre. Agora se olha para o Oriente, para o sol que nasce. Não se trata de um culto solar, mas é o cosmos que fala de Cristo. Com referência a Ele ora é interpretado o hino solar do Salmo 18(19), no qual se diz: ‘[o sol] que sai como um esposo do seu tálamo, como um atleta exulta seu percurso; onde começa o céu ele aparece, chega em sua corrida ao outro extremo’ (vv. 6s.) [...].
Introdução ao Espírito da Liturgia, p. 59.

Essa compreensão é basilar para a tradição cristã. Como aponta o Cardeal em sua obra, rezar para o Oriente era considerada uma tradição apostólica para a igreja antiga; uma tradição tão antiga que é impossível rastrear sua data exata de origem, mas sempre considerada como uma característica essencial da liturgia cristã. A oração voltada para Oriente é cristológica e escatológica, pois exprime o encontro com o Cristo que vem (Sol nascente que nos veio visitar e que confere vida às criaturas) e, simultaneamente, exprime a segunda vinda do Senhor no grande encerramento da história terrestre.


Muitos significados da oração voltada ao Oriente podem ser extraídos da tradição, mas o objetivo deste artigo é tratar do altar e, por isso, não nos deteremos neste ponto. Basta, então, compreender que a oração voltada ao Oriente (comumente chamada pela expressão latina Ad Orientem) está na essência da oração na tradição cristã, ainda que hoje pouco se fale neste aspecto, e influenciou na construção dos templos e do desenvolvimento litúrgico.



A orientação do altar na tradição cristã



Como se pode deduzir, a continuidade e as novidades entre Antigo e Novo Testamento conferiram ao culto cristão seus dois pontos fundamentais: a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística. Porém, para falar da orientação do altar, nos deteremos apenas na segunda parte.


A partir da concepção de oração Ad Orientem, os primeiros templos cristãos nas igrejas bizantinas foram construídos de forma que sacerdote e fiéis estivessem todos voltados na mesma direção do Cristo. Mesmo com o altar afastado da parede, todos permaneciam de um mesmo lado da mesa; ou melhor dizendo, não havia uma situação em que o sacerdote realizasse a liturgia Eucarística de frente para o povo.


Conforme Ratzinger, foi em Roma que se originou o costume da Missa “de frente para o povo”. A basílica de São Pedro, construída sobre o túmulo do apóstolo, sempre foi um local de peregrinações, e as pessoas se aproximavam vindo do Oriente. Qualquer arquiteto decente colocaria a porta no ponto mais próximo de onde as pessoas vinham e, por isso, as portas da basílica foram construídas voltadas para o Oriente. E aí foi gerada a novidade.


Para que o celebrante pudesse olhar para o Oriente, era necessário que rezasse “de frente para o povo”. Porém, o altar da basílica de São Pedro não inaugurou uma nova essência da liturgia. O traçado da basílica buscou conciliar a necessidade do povo que vinha de longe com a orientação litúrgica da oração. Por isso, o celebrante se posicionava como ainda se faz hoje na basílica. A Missa “de frente para o povo” da basílica de São Pedro é, na realidade, uma Missa Ad Orientem, e o estar de frente para o povo é mero acidente.


Ratzinger afirma, então, que a célebre basílica de São Pedro foi imitada por muitas outras igrejas romanas ao decorrer dos séculos e, por uma má compreensão de sua estrutura e significado, a renovação litúrgica do século XX formulou uma nova concepção: a Missa versus populum (voltada para o povo). Nessa ideia, a Missa deveria ser celebrada de forma que sacerdote e povo pudessem olhar um para o outro, constituindo um “círculo de celebrantes” (expressão do próprio cardeal). Disto nasceu também a ideia da Eucaristia enquanto refeição comunitária.


Porém,


... a Eucaristia certamente não pode ser descrita exatamente pelo termo “refeição” ou “banquete”. O Senhor, com efeito, instituiu sem dúvida a novidade do culto cristão no âmbito de um banquete pascal judaico, mas ordenou que repetíssemos essa novidade, não o banquete como tal. Exatamente por isso a novidade rapidamente se libertou do seu antigo contexto e achou uma forma própria para ela...
Introdução ao Espírito da Liturgia, p. 68.

É importante ressaltar que essa visão do Cardeal Ratzinger não vai contra o Concílio Vaticano II. Embora a ideia de Missa versus populum seja celebrada como uma vitória do CVII, nenhum documento do Concílio faz menção a essa ideia. Quem realizou a inovação foi o Conselho de execução da reforma, liderado por Mons. Bugnini.


Como o próprio Ratzinger afirma, foi acerto louvável do Concílio reaproximar o altar dos fiéis e distinguir com clareza o lugar da liturgia da Palavra e sua importância. Mas a modificação da posição do celebrante traz consigo algumas complicações já conhecidas por alguns: em primeiro lugar, não são muitas as igrejas com estrutura de basílica. Por isso, a aplicação desse conceito nas igrejas paroquiais obriga que a cadeira do sacerdote fique no centro do presbitério e próxima do altar, dando a impressão de que ele é o centro da celebração e que sua criatividade sustenta o culto. Em segundo lugar, concatenado ao primeiro, surge a necessidade de distribuir diversas funções aos grupos de liturgia e esperar que inventem arranjos, a fim de diminuir a centralidade demasiada do sacerdote (que incomoda o senso da fé). Em terceiro lugar, conforme Ratzinger, a atenção se torna cada vez menos voltada para Deus e passa a se concentrar na própria comunidade: o que importa é a reunião de iguais, e não o que Deus espera destes.


Estas e outras ideias ferem a essência da liturgia tal qual a tradição nos legou. Esse tipo de compreensão nunca esteve presente na fé cristã, nem mesmo do primeiro milênio. As pesquisas de Bouyer, citadas por Ratzinger, indicam que em nenhuma refeição da era cristã (nem mesmo a Última Ceia de Nosso Senhor) o presidente ficava de frente para os outros participantes. Na verdade, todos ficavam sentados de um mesmo lado da mesa, significando a dimensão comunitária onde todos são iguais; e a tradição cristã absorveu essa proposta na forma da Missa Ad Orientem: o celebrante não está de costas para o povo, e sim todos estão voltados para Deus, nosso Oriente, perante o qual somos todos iguais.


Novamente citando Bouyer, Ratzinger coloca que nunca foi problema ter os fiéis atrás do presbítero na celebração. O ponto central sempre foi a oração voltada para o Oriente, e mesmo na basílica de São Pedro, quando o celebrante estava no altar, todos se voltavam para o Oriente junto com ele. Esse tipo de atitude seria incompreensível hoje, já que temos uma fé na Eucaristia mais desenvolvida teologicamente; mas, para a mentalidade da época, a orientação da oração era mais importante, aspecto que se dissolveu ao longo dos últimos anos a ponto de quase ninguém saber sobre isso nas paróquias católicas.


Para ajudar, Bento XVI propôs que aquelas igrejas que não pudessem retornar à celebração Ad Orientem pusessem um crucifixo sobre o altar, a fim de ressaltar o fato de que o sacerdote não dialoga com o povo na Oração Eucarística, mas com Deus.


Em vista de tudo isso, não interessa se o altar está preso ou afastado da parede, pois a Missa é sempre para Deus, independente de o celebrante estar de costas ou de frente para o povo. Não existe na tradição cristã uma Missa “para o povo”. Logo, a verdadeira discussão não deve ser tão somente sobre a posição do altar, e sim sobre as dificuldades que as atuais normas litúrgicas possuem em transmitir o conteúdo da tradição, ou seja, discutir o rito. Uma discussão séria e sadia, sem ideologias, que busca realmente a melhora da liturgia para o bem da Igreja e seus fiéis.



Objeções e Parresias


Ratzinger apresenta, por fim, algumas objeções que possam ser levantadas à sua proposta. A primeira delas é a acusação de que essas ideias são uma espécie de arqueologia romântica sobre o Antigo, como uma nostalgia, que ignora os séculos posteriores e a dita “evolução” do pensamento litúrgico. Para responder, o Cardeal afirma que não se trata de uma nostalgia ou fuga romântica para o passado, mas de uma busca e redescoberta da essência da liturgia, que confere aos cristãos a sua identidade própria.


A segunda objeção afirma que não é preciso olhar para o Oriente e para a cruz, pois o sacerdote e os fiéis se olham para encontrar reciprocamente no homem a imagem de Deus. Para responder, Ratzinger reflete que a imagem de Deus no homem não pode ser vista com facilidade, como a uma foto. Por isso, facilmente se perde o senso da oração nas celebrações em que o olhar voltado para a Eucaristia não é ressaltado.


A terceira e última objeção é de cunho prático: devemos mudar tudo novamente? Ratzinger reconhece que é prejudicial virar tudo de ponta-cabeça, então, o melhor a se fazer é uma reintrodução orgânica dessas ideias, a começar pela cruz. Um outra possibilidade, que o Apostolado Colarinho Romano adiciona, é o retorno do sacrário ao centro do presbitério, algo que já tem sido implantada em muitas paróquias. Se nem todas as Igrejas podem se voltar para o Oriente, então, que o Oriente se volte para elas. Cristo é nosso Oriente e sua presença real na Eucaristia conservada no sacrário é mais que suficiente como orientação para oração litúrgica.



Conclusão


A tradição cristã sempre observou que o voltar-se para Deus está na essência de sua forma de rezar e de sua identidade. O sacerdote é mediador entre Deus e o povo na Santa Missa, mas não está no nível divino a ponto de ser o referencial da celebração e, por isso, ele também se posiciona na mesma direção do povo: ele foi retirado do meio do povo para imolar sacrifícios a Deus, mas permanece na condição de fiel na presença do divino pastor.


A Missa é sempre Ad Orientem, mesmo que a atual arquitetura das paróquias e consciência litúrgica não expressem isso. Assim, não importa se o altar está preso ou afastado da parede, pois a orientação da oração permanece a mesma. O sacerdote deve cuidar para não romper com essa identidade cristã e nem promover coisas que não fazem parte da essência da liturgia.


A discussão mais elevada, portanto, é saber se o rito expressa suficientemente a fé e a identidade cristã católica, e não somente a disposição geral do Espaço Sagrado. E esse tipo de discussão não é um atentado ao Concílio Vaticano II, mas algo comum do desenvolvimento litúrgico: a Liturgia está sempre buscando melhorias, a fim de oferecer o melhor culto a Deus.


Confiantes em Cristo, e reiterando a fé no papado e no Magistério da Igreja,

Equipe Colarinho Romano.


Bibliografia

Instrução Geral do Missal Romano, 2002.

Introdução ao Espírito da Liturgia, Joseph Ratzinger, 2013.

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