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O lugar da liturgia na realidade, segundo Joseph Ratzinger

Este breve artigo é uma espécie de resumo do primeiro capítulo da obra Introdução ao Espírito da Liturgia, do então cardeal Joseph Ratzinger — posteriormente eleito papa Bento XVI. O texto é basilar para a compreensão do pensamento litúrgico do papa emérito, pois, sem ignorar o movimento litúrgico que lhe antecede, busca recuperar algo da essência da liturgia e da vida cristã, que corre sérios riscos em diversos lugares do mundo.



No primeiro capítulo do seu livro Introdução ao Espírito da Liturgia, o cardeal Ratzinger propõe uma nova abordagem para a compreensão da liturgia, agora partindo de uma refinada compreensão do que se sucedeu com o povo de Israel no processo de sua libertação.


Ratzinger nos lembra que o Êxodo é inicialmente apresentado com duas finalidades, sendo a primeira e mais conhecida a ida do povo de Israel à Terra Prometida. Entretanto, a segunda finalidade é que ganha a atenção do cardeal: o culto a Deus.


Como observa, a ordem original de Deus ao faraó não diz tanto respeito à terra que seria entregue ao povo hebreu, mas ao culto que devia ser oferecido: Deixa meu povo ir para servir-me no deserto! (Ex 7, 16). Expressão que se repete por quatro vezes ao longo dos encontros entre Moisés e Faraó, com leves variações, mas sempre focando numa realidade concreta: o povo de Israel deveria oferecer sacrifícios ao seu Senhor.


O faraó se indispõe com o pedido, mas, após diversas negociações (e pragas lançadas), finalmente permite que o povo parta. E como aponta o cardeal, nenhuma das negociações envolveu a Terra Prometida, mas tão somente a adoração do Deus de Israel. Assim, Israel não sai do Egito para ser um povo como qualquer outro, mas para ser um povo que vive em função de seu Deus; parte para servir a Deus.


Alguns poderiam objetar que o acento à finalidade do culto nas negociações foi uma estratégia política, pois o faraó poderia rejeitar o pedido caso se falasse numa Terra Prometida. A essa objeção, Ratzinger responde categoricamente:


No fundo, a contraposição de terra e culto não tem sentido: a terra é ofertada para ser um lugar de veneração do Deus verdadeiro. A mera posse da terra, a mera autonomia nacional faria Israel descer ao nível dos outros povos. Essa finalidade levaria a ignorar a especificidade da eleição: a história dos Juízes e dos Reis, narrada e explicada nas Crônicas, mostra justamente que a terra como tal, vista em si mesma, permanece como um bem indeterminado, que se torna bem autêntico, verdadeiro dom da promessa cumprida só se aí reinar Deus, e se a terra não existir como uma espécie de estado independente, mas se for o espaço da obediência, onde se cumpre a vontade de Deus e, assim, se realiza a maneira correta da existência humana.
Introdução ao Espírito da Liturgia, p. 14.

Por isso, sempre que o local de culto é profanado, Israel sofre penalidades como o exílio e a opressão por parte de outros povos. Há uma ligação intrínseca entre a Terra Prometida e a fidelidade a Deus e o seu chamado. E Ratzinger enxerga essa unidade entre as duas finalidades do Êxodo já nas narrativas que sucedem à saída do Egito e a passagem pelo Mar Vermelho.


Quando Deus desce no cume da montanha, ordena os Dez Mandamentos e sela uma aliança com Moisés, o povo de Israel aprende como deve adorar a Deus. Essa adoração compreende duas realidades uníssonas: a liturgia e a vida do homem. A liturgia, em sentido restrito, faz parte do culto e presta glória a Deus; e a vida do homem, dentro da exigência de viver conforme seus mandamentos, é uma outra parte significativa do culto, segundo a qual o homem presta verdadeira adoração a Deus no seu agir justo.


Assim, o cardeal Ratzinger enumera três coisas importantes nessa questão: em primeiro lugar, no Sinai o povo recebe não apenas as regras do culto, mas uma organização jurídica e um regra de vida completas, que o constitui como verdadeiro povo, capaz de subsistir enquanto comunidade organizada. Em segundo lugar, observa-se novamente uma unidade intrínseca, agora existente entre o culto, o direito e a cultura do povo judaico. E em terceiro lugar, a partir do pontos anteriores, percebe-se que a organização das coisas humanas necessita de Deus. Sem Ele, o ser humano é diminuído, reduzido, pois se torna privado do olhar sobre as coisas eternas e elevadas, assim como se torna incapaz de notar a sua vocação sobrenatural.


A partir de todas essas considerações, o cardeal Joseph Ratzinger afirma que o culto vai bem além da ação litúrgica executada no templo. O culto abraça a ordem da vida humana como um todo, moldando o homem para agir conforme a vontade divina. A liturgia, então, oferece parâmetros para o direito e para a vida moral, inspirando-os às categorias mais elevadas, isto é, aos desígnios divinos para o florescimento, realização, felicidade da espécie humana.


Conclui-se disto que Deus é o formador das relações humanas, e o culto é uma espécie de antecipação da vida do céu, onde não há mal, mas somente unidade, harmonia, paz, felicidade e adoração a Deus, numa vida conforme a medida divina.


Enfim, segundo Ratzinger, o homem não é capaz de criar sozinho um culto a Deus. Não é o homem que cria ou faz a liturgia, o que se expressa bem nas palavras de Moisés ao faraó: Não sabemos o que devemos oferecer ao Senhor (Ex 10, 26). É necessário que Deus se revele. Se Ele não se revela, o homem não o encontra verdadeiramente, mas apenas aos esboços que surgem daquela intuição interior de que existe um Deus.


A liturgia, portanto, não é fruto da criatividade humana, mas é uma resposta de Deus ao homem que o procura; resposta de um Deus que informa o modo como quer ser adorado.


Para demonstrar essa verdade, o cardeal Ratzinger lembra da passagem sobre o bezerro de ouro. Nesse episódio, o povo fabrica um ídolo pagão para servi-lo como se fosse Deus. O ídolo não toma o lugar do Deus de Israel, mas se coloca como representante d’Ele.


O culto parece correto, seguindo as prescrições, mas é uma apostasia sútil e perigosa. Primeiro porque viola o modo como Deus queria ser adorado, visto que Ele havia proibido o uso de imagens; em segundo, o culto deixa de ser um elevar-se a Deus para se tornar um rebaixamento de Deus: já que Ele não estava presente no momento, os homens o rebaixaram conforme suas necessidades, como se Deus tivesse a obrigação de servir aos homens quando e como querem.


Assim, o culto deixa de ser uma adoração a Deus, e passa a ser uma reafirmação da comunidade e seus anseios. Torna-se uma festa comunitária, cujo centro da atividade dispõe a diversão, o comer, o beber e a autossatisfação. Enfim, a liturgia se torna um lugar vazio, pois o verdadeiro Deus é abandonado, sendo reduzido a uma imagem desprovida de pensamento, vontade e autoridade.


Por fim, como aponta Ratzinger, resta a frustração e o sentimento de vazio, pois a verdadeira libertação só ocorre onde se encontra o verdadeiro Deus.


In corde Iesu, semper,
Colarinho Romano.

Bibliografia

Bíblia, nova tradução oficial da CNBB, 2019.

Introdução ao Espírito da Liturgia, Joseph Ratzinger, 2013.

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