Afinal, os fiéis podem levantar as mãos no Pai Nosso?
- Colarinho Romano
- 22 de ago. de 2022
- 11 min de leitura

Essa pergunta simples foi motivo de grandes discussões por todo o Brasil.
Por isso, resolvemos ajudar na reflexão disponibilizando uma breve pesquisa. O objetivo não é apenas dizer se os fiéis podem ou não erguer as mãos no Pai Nosso, pois a resposta para a pergunta já está nas Instruções Litúrgicas. O objetivo é oferecer dados mais elaborados para uma boa leitura da realidade e escolha das ações corretas para sanar o problema apresentado.
Assim, para que o espectador faça uma leitura frutuosa deste artigo, é necessário que suspenda seu juízo a respeito de quem fala: não se deve julgar o sujeito por parecer pertencer a esta ou aquela ala da Igreja, mas julgar tão somente seus argumentos e confrontá-los diante do firme propósito de alcançar a verdade.
Este artigo segue o seguinte caminho: a) A origem do problema, onde levantamos duas hipóteses para que as pessoas comecem a fazer esse gesto; b) Simbologia e Teologia, tópico em que explicamos o significado do gesto e o porquê de a normativa litúrgica reservá-lo ao sacerdote celebrante; c) Distinção essencial, em que explicamos a linguagem utilizada para explicar as normas, a fim de extirpar ambiguidades; d) As normas atuais, expostas a partir dos atuais livros litúrgicos e explicadas de maneira simples; e) Como resolver o problema, isto é, dicas de como sanar esse erro litúrgico, a fim de que as pessoas possam celebrar a liturgia de acordo com seu estado de vida e retirar máximo proveito espiritual.
A origem do problema
O costume arraigado de o povo elevar as mãos no Pai Nosso pode ter duas origens: uma de ordem prática, outra de ordem teológica.
A de ordem prática é mais uma especulação do que uma constatação: nas primeiras formas da liturgia, o povo tinha visibilidade dos gestos do sacerdote devido à disposição do templo na época de perseguição aos cristãos. Por verem os gestos, as pessoas se sentiam induzidas a imitar, a fim de participarem melhor da Santa Missa.
Com a cessação da perseguição e a construção de grandes igrejas, os gestos do sacerdote no Cânon Romano ficaram até certo ponto inacessíveis e, por isso, pouco a pouco desapareceram do uso dos fiéis, em especial no modo de celebrar que se desenvolveu a partir do Concílio de Trento.
Com a renovação litúrgica do Concílio Vaticano II, as pessoas têm novamente o acesso visível a esses gestos e são compelidas a imitar, tal como os antigos. Isto se pode complementar pelo fato de que não apenas as mãos erguidas são imitadas: em diversos lugares, observa-se que as pessoas batem no peito junto do sacerdote na oração E a todos nós, pecadores... do Cânon Romano, erguem as mãos para o Cálice na Doxologia Final e fazem reverência sempre que o sacerdote o faz nas orações. A imitação dos gestos é própria de uma má formação litúrgica e pouca conscientização do que deve ser feito para participar da Missa.
A de ordem teológica, porém, é mais séria: muitos defendem que o povo pode erguer as mãos mesmo que esse gesto remeta liturgicamente ao crucificado, pois “todos são sacerdotes pelo batismo”.
Porém, há uma diferença de essência entre o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial, de modo que este não é apenas aprofundamento ou plenitude daquele, mas é uma forma específica de configuração ao Cristo: o sacerdócio comum é o corpo, mas o ministerial é a cabeça. Para entender isso, melhores especificações se fazem necessárias.
Simbologia e Teologia?
O dicionário litúrgico do frei Basilio Rower (1936) atesta que o gesto de elevar as mãos exprime reverência, submissão e elevação do coração a Deus, e que tal ato remete ao “antigo costume de o clero e povo estenderem, durante a oração, os braços em linha quasi horizontal, imitando a Christo na Cruz, o que Tertulliano e outros attestam dos primeiros seculos” (p. 148) [1]. Ainda segundo frei Rower, o costume de os fiéis erguerem os braços foi se perdendo pouco a pouco, até que se tornou um gesto exclusivo do sacerdote, conforme preveem as atuais normas litúrgicas — algo que já foi sobredito como especulação neste artigo.
O Cardeal Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), em sua obra Introdução ao Espírito da Liturgia, alude a esse mesmo significado do gesto (p. 168): rezar de braços abertos é expressão do Cristo crucificado; no entanto, vai adiante ao dizer que o gesto de Cristo na cruz exprime uma dupla dimensão: o primeiro é a forma radical de adoração d’Aquele que se entrega inteiramente ao Pai, e o segundo é a entrega d’Ele por nós, como Alguém que quer atrair todos para si por meio de um grande abraço.
Para complementar, pode-se mencionar ainda o que diz o Cerimonial dos Bispos:
É costume, na Igreja, o Bispo ou o presbítero dirigirem a Deus as orações de pé, com as mãos um tanto elevadas e estendidas. Tal costume de orar já se encontra na tradição do Antigo Testamento, e foi adotado pelos cristãos em memória da Paixão do Senhor: “Quando a nós, não só erguemos (as mãos), senão que também as estendemos, e (cantada) a Paixão do Senhor, louvamos a Cristo através da oração.
Cerimonial dos Bispos, n. 104.
Em todas as interpretações acima, o gesto remete sempre ao Cristo crucificado. E pelo que indica o Cerimonial dos Bispos, o gesto de abrir os braços no Pai Nosso é o mesmo realizado pelo sacerdote quando recita a Oração Coleta e outros momentos da Santa Missa em que exerce a função de intercessor de modo próprio da Ordem.
E mesmo que se ateste que os primeiros cristãos realizavam tal gesto, cabe notar que a Teologia do Sacramento da Ordem e as normas litúrgicas não estavam tão bem estruturadas e divulgadas como hoje e, por isso, esse fato não é suficiente para descumprir as normas atuais.
Fato é que este gesto está atualmente reservado aos sacerdotes ministeriais, como se dirá adiante, e é importante que haja essa distinção, pois:
Os gestos e atitudes corporais, tanto do sacerdote, do diácono e dos ministros, como do povo, visam conseguir que toda a celebração brilhe pela beleza e nobre simplicidade, que se compreenda a significação verdadeira e plena das suas diversas partes e que se facilite a participação de todos. Para isso, deve-se atender ao que está definido pelas leis litúrgicas e pela tradição do Rito Romano, e ao que concorre para o bem comum espiritual do povo de Deus, mais do que à inclinação e arbítrio de cada um. A atitude comum do corpo, que todos os participantes na celebração devem observar, é sinal de unidade dos membros da comunidade cristã reunidos para a sagrada Liturgia: exprime e favorece os sentimentos e a atitude interior dos presentes.
Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 42.
Esse e outros números (11, 28, 30 e 33) da Constituição atestam a necessidade da distinção dos gestos, a fim de que possam participar ativa e frutuosamente da Santa Missa cada qual ao modo próprio de seu estado de vida e função litúrgica, e que as normas sejam observadas por todos!
É preciso considerar que, embora os fiéis possuam um sacerdócio comum — que é necessário para sua participação no culto divino, segundo o que expõe santo Tomás de Aquino na Suma Teológica III, q. 63 —, é o sacerdócio ministerial dos epíscopos e presbíteros que opera a renovação do sacrifício do Calvário, de modo que os sacerdotes agem na Pessoa de Cristo Cabeça.
Mesmo que o sacerdócio comum não seja de modo algum desprezado ou desvalorizado, a diferença entre ele e o sacerdócio ministerial se dá não somente em grau, mas em essência, como afirma o Papa Pio XII na alocução Magnificate Dominum em 02 de novembro de 1954.
Essa distinção já se encontrava em sua Encíclica Mediator Dei (1947):
Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da Ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus Cristo.
Encíclica Mediator Dei, n. 38.
Assim, embora se ordenem mutuamente um para o outro, as duas formas de sacerdócio não exercem do mesmo modo suas funções e nem possuem a mesma função. Os fiéis batizados são chamados a ofertar o sacrifício de sua vida cotidiana, enquanto os sacerdotes ministeriais são os únicos capazes de ofertar não apenas o sacrifício de suas vidas, mas o sacrifício do próprio Cristo, ofertado de uma vez por todas na Cruz e renovado todos os dias a cada Santa Missa.
Em outras palavras, o sacerdócio comum dos fiéis é uma realidade interna que os faz participar de certo modo do sacerdócio de Cristo e que lhes oferece o necessário para receber o que é divino e para ofertar sacrifícios espirituais. O sacerdócio ministerial, porém, age na Pessoa do próprio Cristo, renovando no altar seu ato salvífico da cruz. É o próprio Cristo quem realiza o sacramento através do ministro.
Por isso, ainda que todos sejam de algum modo sacerdotes, a Igreja reserva aos ministeriais o gesto litúrgico que remete ao Cristo crucificado em vista de sua função própria, exclusiva, e isto precisa ser ensinado e explicado, a fim de que todos tenham consciência do porquê e para que.
Distinção essencial
Devido à doutrina do sacerdócio comum dos fiéis, o Concílio Vaticano II expressa que todos aqueles que participam da Santa Missa são celebrantes, embora o façam de acordo com seu estado de vida: os sacerdotes ofertam a renovação do Sacrifício do Calvário e os leigos ofertam, pelas mãos do sacerdote, o sacrifício de louvor. Daí surge o termo “presidente da celebração”, que designa o sacerdote ministerial que exerce as funções próprias de sua Ordem.
Porém, para evitar ambiguidades e facilitar a compreensão deste texto, reservaremos aos sacerdotes o termo “celebrar”, significando o ato de renovar o sacrifício de Cristo, o que — repetimos — é próprio do sacerdócio ministerial do Sacramento da Ordem; e utilizaremos o termo “assistir” para aqueles que não ofertam o Sacrifício do Calvário.
Assistir (do latim, assistere) significa “estar com”, “participar de”, “prestar assistência”. Quando este termo é utilizado para se referir aos fiéis que participam da Santa Missa, não significa que estes participem de maneira passiva (como se apenas vissem e ouvissem os acontecimentos), mas diz respeito à forma específica de celebrar daqueles que não estão exercendo o sacerdócio ministerial: leigos, coroinhas, acólitos, diáconos, presbíteros não-celebrantes... Enfim, todos que participam e/ou assumem função na Missa mas não atuam propriamente como sacerdote celebrante ou concelebrante.
Essa pequena distinção nos termos e nos sujeitos a quem são atribuídos será fundamental para o entendimento do próximo tópico deste artigo, de modo que as ambiguidades da forma estrutural das frases possam ser amenizadas.
As normas atuais e a interpretação da ambiguidade
No concernente às normas atuais, permanece a imperativa de que somente o sacerdote celebrante deve erguer as mãos no Pai Nosso, mas essa disposição é frequentemente mal interpretada pelo risco de ambiguidade que é próprio da Língua Portuguesa: as vírgulas enganam.
No Rito da Comunhão presente no Missal Romano (p. 500), a rubrica expressa: O sacerdote abre os braços e prossegue com o povo. Essa norma é bastante clara. Somente o sacerdote abre os braços. No entanto, a confusão se faz a partir da IGMR, na seção que trata da Missa Concelebrada (p. 98), que diz: ... reza a Oração do Senhor com os demais concelebrantes, também de mãos estendidas e com todo o povo.
Ao ler essa parte final, alguns entendem que “e com todo o povo” inclui o ato de erguer as mãos, mas esse “e” se refere unicamente ao ato de rezar, não ao gesto com as mãos. Isto se confirma por outro parágrafo dessa mesma IGMR, quando dispõe sobre a Missa sem diácono (p. 82): ... o sacerdote, de mãos unidas, diz a exortação que precede a Oração do Senhor e, a seguir, de mãos estendidas, proclama-a juntamente com o povo. Nessa parte, a rubrica diz sempre na perspectiva do sacerdote, a quem pertencem os gestos.
Por fim, para reforçar essa interpretação, pode-se recorrer ao Cerimonial dos Bispos (n. 159): Terminada a doxologia da Oração eucarística, o Bispo junta as mãos e proclama o convite à oração dominical, a qual todos a seguir cantam ou recitam. Enquanto isso, o Bispo e os concelebrantes mantêm as mãos estendidas. Se o gesto de abrir os braços fosse próprio do povo, também se manteria na Missa com o Bispo; o Cerimonial dos Bispos apenas coloca em outras palavras uma norma que já está convenientemente expressa em outros livros: abrir os braços é próprio do sacerdote celebrante.
E há mais uma coisa a ressaltar! As normas sempre mencionam os sacerdotes que estão oferecendo o Santo Sacrifício da Missa, mas não aqueles que assistem à Missa em vestes corais. Isto significa que aqueles padres que não estão celebrando ou concelebrando o sacrifício não devem fazer o gesto, e essa interpretação se coaduna com o sobredito do significado do gesto: se esse gesto expressa o crucificado no sacerdote oferente, aquele que não está oferecendo não deve fazer o gesto.
Como resolver o problema?
Resolver esse problema é a coisa mais simples, mas que é dificultada geralmente por dois motivos: pessoas de má vontade e fragilidade sentimental.
As pessoas de má vontade podem ser facilmente identificadas quando dizem que “existem problemas mais sérios para resolver. A Igreja não tem que perder tempo com bobagens do tipo ‘levantar as mãos no Pai Nosso’”. Ora, a Liturgia é o núcleo da vida cristã, como reafirmou o Concílio Vaticano II. Não é trivial ordenar o culto divino, para o qual tende todas as atividades da Igreja. A posição dessas pessoas, quando investigada, revela apenas a má vontade em renunciar aos que se quer fazer e seguir o que a Igreja determina.
Além disso, mesmo que existam problemas mais sérios para resolver, a Igreja não pode se furtar das coisas simples. Como sobredito, esse simples gesto está carregado de simbolismo e pedagogia, e se resolvê-lo é algo simples e rápido, por que não o fazer?
Quanto à fragilidade sentimental, quer se dizer o fato de que as pessoas se magoam muito facilmente, atitude que se enraizou em diversas partes do Brasil e gerou uma espécie de respeito humano, onde falar o que é necessário se torna uma espécie de agressão verbal. Não é preciso dizer que essa posição impede que o bem seja feito. Os sacerdotes podem e devem educar seus fiéis, e, utilizando as palavras certas, todos podem ser instruídos sem ofensas. Há pessoas de boa vontade que não fazem o certo apenas porque não foram ensinadas!
Enfim, para resolver o problema, é simples: o sacerdote pode reservar uma homilia durante a semana para fazer uma catequese sobre os gestos litúrgicos, utilizar o momento dos avisos para explicar com brevíssimas palavras ou realizar essa instrução alguns minutos antes da Missa. Seja qual for dos três momentos, é importante falar com serenidade e demonstrar a importância de seguir as normas litúrgicas.
Realizar uma formação de liturgia é importante, mas para esse problema específico não é o aconselhável num primeiro momento, pois geralmente poucas pessoas comparecem à reunião e a informação se espalha muito lentamente. Em vista disso, utilizar algum momento da celebração é mais efetivo, pois o povo está todo reunido.
Conclusão
À vista de tudo o que foi exposto, resume-se que o povo não deve erguer/abrir os braços durante o Pai Nosso, pois é um gesto que remete ao Cristo crucificado e as normas litúrgicas o reservam exclusivamente ao sacerdote ministerial em exercício de suas funções próprias na celebração.
A distinção de gestos entre sacerdote e fiéis é necessária e requerida pelo Concílio Vaticano II para uma ativa e frutuosa participação na Missa, cada qual segundo seu estado de vida e função litúrgica, e isto deve ser transmitido convenientemente ao povo reunido e, posteriormente, aprofundado numa formação litúrgica.
Notas
[1] O dicionário litúrgico do frei Rower foi publicado em 1936 e, por isso, seu português é diferente do atual acordo ortográfico. Decidimos transcrever tal qual está no livro original.
Bibliografia
Cerimonial dos Bispos. Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos. Paulus, 2001.
Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Concílio Vaticano II. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html . Acesso em: 19/08/2022.
Constituição Dogmática Lumen Gentium. Concílio Vaticano II. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html . Acesso em: 19/08/2022.
Diccionario Liturgico. Frei Basilio Rower, OFM. Petrópolis, RJ: Vozes, 1936.
Dicionário Elementar de Liturgia. José Aldazábal. Paulinas, 2007.
Encíclica Mediator Dei. Pio XII. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-dei.html . Acesso em: 19/08/2022.
Instrução Geral do Missal Romano. Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos. CNBB, 2002.
Introdução ao Espírito da Liturgia. Joseph Ratzinger. São Paulo: Loyola, 2015.
Suma Teológica, Vol 04 — III pars. Tomás de Aquino. Campinas, SP: Ecclesiae, 2016.
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